A chamada Carta de São Paulo foi redigida durante a Conferência de São Paulo. Será apresentada à ONU durante a 15ª Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP 15), a ser realizada no início de dezembro de 2009, em Copenhague (Dinamarca).
Abaixo, a íntegra da Carta.
1. Vivemos um novo tempo – um tempo de angústia e de preocupação global sob a pressão da “implacável urgência do agora” e da necessidade imediata de agir. A esperança de mudar o curso das coisas implica romper com os reflexos tradicionais. É hora de provocações construtivas e de rupturas audaciosas frente ao curso habitual das coisas. Esse imperativo absoluto requer mudar de forma radical e imediata.
Esta lógica de um recomeço poderia já ter tomado corpo em 2009. Infelizmente, de G8 a G20, de cúpulas apenas declaratórias à indecisão coletiva, afasta-se a perspectiva de aprender com as grandes crises que atravessamos. As ameaças que pesam sobre a existência do planeta não são tomadas a sério pelo conjunto dos políticos e economistas responsáveis pelo destino da humanidade. Apesar do aquecimento global ser inexorável e indiscutível, não há ainda nenhum acordo em escala planetária para lutar de fato contra essa ameaça vital para a terra dos homens. Persistem os sinais de uma economia ultra-especulativa, ultra-financeirizada e cega ao humano, sem nenhuma medida séria de regulação mundial contra este flagelo que destrói os equilíbrios sociais, fator de miséria social crescente e de sofrimento humano. Por fim. ogivas nucleares estão disseminadas pelo mundo, prontas a explodir, sem nenhuma ação de envergadura para erradicar este perigo mortal. Se nada for feito, agora, e se algum historiador sobreviver para contar a historia do nosso tempo, não terá outra escolha senão a de acusar os responsáveis por esta inércia de “não assistência a uma humanidade em perigo”.
2. Devemos enfrentar uma incrível conjunção de crises de alcance mundial: esgotamento dos recursos naturais, destruição irreversível da biodiversidade, desregramento do sistema financeiro, desumanização do sistema econômico internacional, fome e penúria, pandemias virais, desagregação política... Apesar do que dizem os tecnocratas e os céticos profissionais, nenhum desses fenômenos pode ser considerado isoladamente. Todos estão fortemente interconectados, interdependentes e formam uma única “policrise” ameaçando o mundo com uma “policatástrofe”. É tempo de analisar sistemicamente o problema para encontrar, enfim, soluções integradas – primeiros passos para redefinir os princípios que deverão inspirar no futuro a conduta global dos assuntos humanos.
3. Como estas grandes crises do século XXI são planetárias, é imperativo que homens e mulheres de todo mundo reconheçam sua interdependência. Catástrofes ocorridas e catástrofes iminentes: na encruzilhada das urgências é tempo da humanidade tomar consciência de sua comunidade de destino. Não se trata de efeito borboleta, mas de uma realidade grave e forte: é nossa casa comum a todos que ameaça ruir e nossa única salvação é coletiva. A globalização nos ensina, nenhum Estado é capaz de fazer respeitar uma ordem mundial e de impor as indispensáveis regulações globais. O fim das tentações imperiais, o fim da dominação ocidental e a intervenção crescente de atores não-governamentais marcam hoje os limites da noção de soberania nacional e o fracasso de sua expressão internacional: a ordem fundada nas relações intergovernamentais.
Os interesses nacionais, ou seja, os egoísmos locais, continuam a prevalecer, transformando o cenário internacional em um mercado de barganhas sórdidas. Tanto na luta contra o aquecimento climático, nas questões energéticas, segurança coletiva, comercio mundial e outros, a incapacidade de entender o que esta em jogo, demonstra a miopia congênita dos interesses nacionais. Neste tipo de jogo de soma zero, cada concessão é sempre vivida como uma derrota.
Na maioria das vezes, por trás da promoção da multipolaridade está o jogo das influências e das aspirações nacionais à dominação. É preciso trabalhar com modelos de organização alternativos à hegemonia.
4. A emergência dessa “comunidade mundial de destino” requer a proclamação do principio de inter-solidariedade planetária, uma verdadeira “ Declaração de Interdependência”. Isto significa a instauração de uma governança mundial digna deste nome. No momento atual não há nenhuma. Alguns elementos de regulação internacional e algumas instituições já atuam eficazmente em escala global. Entretanto, é preciso questionar, para superá-los, os limites do direito internacional e do seu principio fundador, a soberania nacional, em nome de um principio superior, em nome da Justiça. A governança mundial é a capacidade de ir além das barganhas entre interesses particulares para tomar decisões políticas planetárias em nome da humanidade.
A “comunidade internacional” não pode continuar sendo uma entidade vaga, destituída de corporificação política e suspeita de viés pró-ocidental. Faz muito tempo que a indispensável reforma das Nações Unidas se choca com a Realpolitik dominante na cena internacional. A incapacidade de levar em conta o aspecto sistêmico dos problemas, de fazer evoluir o Conselho de Segurança e de avançar em questões como a criação de um Conselho de Segurança Econômico, Social e Cultural ilustram os fracassos das relações intergovernamentais. A hora não é mais da estrita soberania nacional, mas da solidariedade mundial.
5. O primeiro passo rumo à definição desta solidariedade mundial é o reconhecimento universal do conceito de interdependência. Portanto, convocamos solenemente os países que se sentem mais diretamente ameaçados pelo aquecimento climático a somar suas vozes nas negociações sobre o clima e proclamar sua vontade de por em comum uma parte de sua soberania para provocar, enfim, a adoção de medidas eficazes. No mesmo espírito, será necessário que múltiplas nações se juntem para fazer pressão sobre a Assembleia Geral da ONU com vistas à adoção formal de uma Declaração Universal de Interdependência. É necessário dar força de direito a este principio justo e, por natureza superior, ao estrito respeito das soberanias nacionais.
Apelamos também à criação de um foro político onde possam ser concretamente definidos os interesses superiores da humanidade, um espaço onde possam se expressar a diversidade e a sabedoria das culturas por meio de representantes da sociedade civil e das autoridades morais, intelectuais e científicas. Apelamos, por fim, a redescobrir o espírito pioneiro da Carta das Nações Unidas que proclamava “Nós, os povos.”
6. Fiel aos seus valores, o Collegium International declara sua vontade de contribuir ativamente à emergência indispensável de uma governança mundial. Primeiro, reunindo uma Convenção mundial, composta de representantes do mundo político e da sociedade civil, para repensar o direito dos povos na era planetária. Uma vez a interdependência erigida em norma universal, será inevitavelmente preciso tirar conseqüências concretas para o meio ambiente, o comercio, os conflitos, etc. Segundo, o Collegium se dispõe a criar uma plataforma virtual da sociedade civil, espaço de dialogo e de troca de experiências e boas práticas desenvolvidas pelo mundo afora, para responder aos desafios contemporâneos. Por fim, o Collegium se compromete a exercer a mais intransigente vigilância sobre a situação mundial. E denunciar publicamente, sem a menor hesitação, as decisões que julga terem sido tomadas em função de arbitragens entre interesses nacionais ilegítimos e não em função do interesse superior da humanidade.
O século XIX foi o das nações industriais e de suas guerras, o século XX foi o das sociedades de massa e das guerras totais. Há que ouvir as correntes subterrâneas da historia: o século XXI será o da governança mundial – ou não existiremos mais.
Se é urgente alertar, mais urgente ainda é começar.
Comecemos!